Artigo

Declaração Universal de Direitos Humanos

Fonte:https://unric.org/pt/wp-content/uploads/sites/9/2023/10/PT-UDHR-v2023_web.pdf



Introdução


A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 10 de dezembro de 1948, no Palais de Chaillot em Paris, foi elaborada para responder diretamente às calamidades e atos bárbaros vividos pelos povos do mundo durante a Segunda Guerra Mundial. A Declaração dá corpo aos valores universais que transcendem culturas, nações e regiões, e proclama os direitos inalienáveis aos quais todos os seres humanos, independentemente da sua raça, cor, religião, sexo, idioma, opinião política ou outra, origem nacional ou social, propriedade, nascimento ou outra condição têm inerentemente direito enquanto seres humanos. O texto é composto por 30 artigos. Em junho de 1946, após o conflito mais mortal que o mundo já havia visto, o recém-criado Conselho Económico e Social das Nações Unidas estabeleceu a Comissão de Direitos Humanos, composta por 18 membros de várias nacionalidades e origens políticas. A Comissão, órgão permanente das Nações Unidas, foi constituída para conceber e redigir o texto. Estabeleceu um Comité Especial de Redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, presidido por Eleanor Roosevelt, para redigir os artigos da Declaração. O Comité reuniu-se em duas sessões ao longo de dois anos.


O canadiano John Peters Humphrey, diretor da Divisão de Direitos Humanos do Secretariado das Nações Unidas, foi encarregue pelo secretário-geral das Nações Unidas de trabalhar no projeto. A ele juntaram-se outros especialistas de renome, incluindo René Cassin de França, Charles Malik do Líbano, Peng-chun Chang da China, William Hodgson da Austrália, Hernán Santa Cruz do Chile, Alexander Bogomolov da União Soviética e Charles Dukes (Lord Dukeston) do Reino Unido. Humphrey forneceu o rascunho inicial que se tornou o texto de trabalho da Comissão. Depois de o Comité ter terminado o seu trabalho em maio de 1948, o projeto foi discutido pela Comissão de Direitos Humanos, o Conselho Económico e Social e o Terceiro Comité da Assembleia Geral antes de ser submetido a votação em dezembro de 1948. Muitas emendas e propostas foram feitas pelos Estados-membros da ONU durante o processo. Hoje, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é o texto mais traduzido em todo o mundo. Um testemunho da sua própria universalidade.


Preâmbulo


Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;


Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do Homem conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do Homem;


Considerando que é essencial a proteção dos direitos do Homem através de um regime de direito, para que o Homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão;


Considerando que é essencial encorajar o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações;


Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla;


Considerando que os Estados-membros se comprometeram a promover, em cooperação com a Organização das Nações Unidas, o respeito universal e efetivo dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais;


Considerando que uma conceção comum destes direitos e liberdades é da mais alta importância para dar plena satisfação a tal compromisso: 


A Assembleia Geral  proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos  como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos tanto entre as populações dos próprios Estados-membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição.


Artigo 1°

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.


Artigo 2° Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autónomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.


Artigo 3° Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.


Artigo 4°

Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos.


Artigo 5°

Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.


Artigo 6°

Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento, em todos os lugares, da sua personalidade jurídica.


Artigo 7°

 Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.


Artigo 8°

 Toda a pessoa tem direito a recurso efetivo para as jurisdições nacionais competentes contra os atos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei.


Artigo 9°

Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado.


Artigo 10°

Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.


Artigo 11°

 1. Toda a pessoa acusada de um ato delituoso presumese inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.

2. Ninguém será condenado por ações ou omissões que, no momento da sua prática, não constituíam ato delituoso à face do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a que era aplicável no momento em que o ato delituoso foi cometido.


Artigo 12°

Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a proteção da lei.


Artigo 13°

1. Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado.

2. Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país.


Artigo 14°

1. Toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros países.

2. Este direito não pode, porém, ser invocado no caso de processo realmente existente por crime de direito comum ou por atividades contrárias aos fins e aos princípios das Nações Unidas.


Artigo 15°

1. Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade.

2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade.


Artigo 16°

1. A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direitos iguais.

2. O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos futuros esposos.

3. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado.


Artigo 17°

1. Toda a pessoa, individual ou colectiva, tem direito à propriedade.

2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.


Artigo 18°

]Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.


Artigo 19°

Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.


Artigo 20°

1. Toda a pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas.

2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.


Artigo 21°

1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na diretamente dos negócios públicos do seu país, quer diretamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos.

2. Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país.

3. A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos: e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto.


Artigo 22°

Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país.


Artigo 23°

1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego.

2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual.

3. Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social.

4. Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses.


Artigo 24°

Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e as férias periódicas pagas.


Artigo 25°

1. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.

2. A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozam da mesma proteção social.


Artigo 26°

1. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional dever ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito.

2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.

3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos.


Artigo 27°

1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.

2. Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria.


Artigo 28°

Toda a pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efetivos os direitos e as liberdades enunciadas na presente Declaração.


Artigo 29°

1. O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade.

2. No exercício deste direito e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática.

3. Em caso algum estes direitos e liberdades poderão ser exercidos contrariamente e aos fins e aos princípios das Nações Unidas.


Artigo 30° Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma atividade ou de praticar algum ato destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados.





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Esses dados permitem ter uma compreensão inicial de quem são essas mulheres e por que estão encarceradas, e também analisar cor/raça /etnia, idade e categorias infantis. Hoje temos 27.010 mulheres privadas de liberdade em celas físicas, 10.872 presas em suas casas com vigilância eletrônica e 8.742 presas em suas casas sem vigilância eletrônica. No total, temos 46.624 mil mulheres cumprindo pena no Brasil em dezembro de 2023, segundo dados do governo brasileiro. Em 2021, Lista Global de Mulheres Encarceradas | O ano de 2022 revelou que no Brasil tínhamos mais de 42.694 mil mulheres presas, ou seja, esse número aumentou no último ano. É importante considerar que os dados governamentais são inconsistentes devido ao método de produção, que depende do envio de cada um dos 27 governos estaduais, e nem todos enviam. A realidade da gravidez e dos cuidados infantis para mulheres encarceradas no Brasil Segundo dados do Sistema de Informação do Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN), das 27.010 mulheres que cumprem pena em prisões, a maior parte delas está na faixa etária de 25 a 45 anos. 61% destas mulheres são negras, 38% não completaram o primeiro ciclo de ensino. No ensino primário, 27% cumpriram penas de 4 a 15 anos de prisão e 31% não foram julgados e estão em prisão preventiva. Destacamos os dados relativos à maternidade de mulheres privadas de liberdade: 230 grávidas, 103 lactantes, 99 crianças em celas, 51 creches e 81% têm filhos . Contudo, o sistema penitenciário de muitos estados da Federação não conta com ginecologistas e muito menos com atendimento pediatra interno, dependendo de atendimento em unidades de saúde externas, descumprindo o Plano Nacional de Saúde Prisional . Nossa organização produziu dados sobre presidiárias em 2023, revelando que 81% dessas presidiárias também têm filhos. Com base nessas informações e dados, nosso relatório se dedica a refletir o cumprimento pelo Estado brasileiro dos seguintes artigos da CEDAW, no campo das mulheres mães presas, respectivamente, no Artigo 4.2 (medidas especiais permanentes) e no Artigo 12 (medidas especiais permanentes) direito à saúde). b- Decisão da Suprema Corte sobre Habeas Corpus 143.641 – Obstáculos para mulheres elegíveis Nossa contribuição para a revisão do Brasil pelo Comitê CEDAW está no contexto da proteção à maternidade de mulheres encarceradas, da seletividade da aplicação da decisão Habeas de Corpus nº 143.641 do Supremo Tribunal Federal e da ausência de proteção médica e assistência à saúde da mulher atendimento no sistema penitenciário. A maternidade é um fato real e relevante entre as mulheres encarceradas. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal declarou na Ação nº 347 que o sistema prisional no Brasil enfrenta um grave padrão de assuntos inconstitucionais . Esta ação representa um marco para essas pessoas invisíveis, pois há mais de duas décadas os movimentos sociais denunciam a fome e a sede como formas de violência estrutural na prisão , tendo em vista o descumprimento por parte do Estado das obrigações mínimas. No caso das mulheres, a situação se agrava em termos de violência, pois a fome não é amenizada na mesma proporção que a dos homens, pois as mulheres sofrem um duplo risco: além da prisão, há também a solidão , a ausência de assistência dos seus famílias que fornecem itens de higiene pessoal e acesso ao direito à defesa legal. Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) constatou que cada mulher encarcerada resulta em mais pobreza e mais danos à vida de pelo menos mais cinco pessoas livres . Ou seja, temos no Brasil pelo menos 233.120 mil pessoas afetadas pelo encarceramento de mulheres. Nossa organização constata que a maioria indiscutível são outras mulheres e seus filhos. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu o Habeas Corpus Coletivo HC 143.641, determinando a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar para mulheres privadas de liberdade, grávidas, mães de filhos até 12 anos ou pessoas com deficiência , sem prejuízo da aplicação das medidas alternativas previstas no artigo 319.º do Código de Processo Penal. No entanto, esta decisão não é autoexecutável , exigindo assistência jurídica para apresentar pedidos individuais perante às instâncias inferiores, o que encontra séria relutância por parte dos juízes relevantes nos tribunais de recurso locais ou estaduais, tendo em conta o preconceito de género inerente ao Judiciário, semelhante ao entendimento da CEDAW no caso Vertido v. Filipinas (2008). Em 2019, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro publicou uma pesquisa revelando que naquele estado, uma em cada quatro mulheres dentro dos requisitos da decisão do STF permanece presa desnecessariamente: “Praticamente uma em cada quatro mulheres que passaram pelo Centro de Custódia Auditiva de Benfica, na Zona Norte do Rio de Janeiro, viu a sua detenção mantida apesar de cumprir todos os requisitos para obter liberdade provisória ou prisão domiciliária – ou seja: estar grávida, amamentar ou mãe de criança com deficiência ou até 12 anos de idade e que não responda a crime violento ou cometido sob ameaça de força.” Esta pesquisa também verificou que três em cada quatro dessas mulheres também são negras . Um ano após a decisão do STF, apesar dos esforços de diversas organizações de direitos humanos e Defensorias Públicas, muitas mulheres permaneciam presas com seus filhos, demonstrando a limitada eficácia da medida. Esta é a realidade de várias das iniciativas dedicadas às mulheres presas, que têm chamado a atenção no debate público, mas com pouco impacto material na vida das mulheres encarceradas. Seis anos após esta decisão, nossa prática diária de pedidos de prisão domiciliar com base nesta decisão do STF demonstrou a dificuldade do sistema de justiça criminal brasileiro em aplicá-la . Apesar da decisão do Supremo Tribunal, no contexto dos artigos 4.º e 12.º da CEDAW, que permitiria a protecção da maternidade de 6.782 mulheres atualmente privadas de liberdade e, claro, dos seus filhos, estas mulheres permanecem na prisão. Esta realidade de descumprimento desta decisão tem impactos negativos imensuráveis na vida de toda uma família, violando diversos direitos da CEDAW. Além disso, o custo anual desse contingente de mulheres que são privadas de liberdade por descumprir decisão do STF ou do Código de Processo Penal e por sua vez descumprir os referidos artigos desta convenção é de R$ 244.224.330,00. (cerca de (40 milhões de dólares), segundo informações do SISDEPEN em relação ao custo mensal de cada preso. Recomendação sugerida: Desenvolver uma estratégia específica e assertivas para implementar a Instrução Habeas Corpus nº 143.641, incluindo treinamento direcionado para juízes, promotores, advogados e outros operadores de justiça do sistema de justiça criminal, e visitas às unidades prisionais relevantes, envolvendo o Poder Judiciário dos Estados brasileiros, com benchmarks , monitoramento e avaliação. Nosso relatório luz encontra-se na página do Comitê CEDAW no link: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=INT%2FCEDAW%2FCSS%2FBRA%2F58260&Lang=en Fontes: As melhores informações sobre nossa instituição: https://www.apmariafelipa.com.br/ https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/relipen/relipen-2-semestre-de-2023.pdf https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saps/pnaisp Para mais informações sobre o perfil dos internos atendidos por nossa instituição: www.apmariafelipa.com.br/es/transparência https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=515220&ori=1 Nossa organização denunciou essas violações e outras no Diálogo Interativo sobre Tortura na 55ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos: https://www.instagram.com/reel/C4Q52JHOiXT/?igsh=MWQ3b2xvMHdxZnZjdg== https://carceraria.org.br/mulher-encarcerada/o-que-explica-o-abandono-das-mulheres-encarceradas ; https://repositorio.ufrn.br/handle/123456789/40394 ; https://drauziovarella.uol.com.br/mulher/a-solidao-das-mulheres-nas-cadeias-para-elas-a-pena-e-dobrada/ ; https://www.ihu.unisinos.br/630924-no-presidio-a-mulher-e-condenada-a-%20solidao ; https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2023/03/18/alem-da-cela-a-cada-um-preso-no-brasil-outras-cinco-pessoas-sao- afetadas-aponta-estudo.ghtml https://carceraria.org.br/mulher-encarcerada/estudo-da-defensoria-afirma-que-no-rj-uma-em-cada-quatro-mulheres-e-mantida-presa-sem-necessidade Conteúdo completo da pesquisa: https://sistemas.rj.def.br/publico/sarova.ashx/Portal/sarova/imagem-dpge/public/arquivos/relat%C3%B3rio_CAC_Benfica_mulheres_27.03.19.pdf https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdep​
Por Fernanda Oliveira 02 nov., 2023
No dia 08 de março de 2020, a Assessoria Popular Maria Felipa [4] , uma articulação de advogadas populares que atuam na perspectiva do abolicionismo penal a fim de garantir e ampliar o acesso à justiça – sobretudo na compreensão da necessidade de enfrentar o encarceramento em massa de forma intransigente, individualizada e qualificada –, expõe e questiona os desafios cotidianos de lidar com a invisibilidade do invisível: as mulheres mães e/ou grávidas encarceradas. O título do nosso artigo expressa a ideia de que se o encarceramento já é invisível para a sociedade, quando se trata de encarceramento de mulheres existe uma invisibilidade dentro do invisível. Entendendo essa invisibilidade a Assessoria Popular Maria Felipa desenvolve, desde 2017, o Projeto Solta Minha Mãe, utilizando das ferramentas disponíveis na estrutura do Sistema de Justiça Criminal do Brasil para buscar a redução da população prisional feminina. Ressalta-se que o Projeto Solta Minha Mãe é financiado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos, viabilizando o acesso à justiça. A primeira etapa do projeto, de 2017 a março de 2019, inicia-se atuando em casos de mulheres já sentenciadas, em três unidades prisionais da região metropolitana de Belo Horizonte, realizando pedidos de perdão de pena nos marcos dos dois decretos de indulto publicados com atenção às mulheres no dia das mães de 2017 e 2018. Durante a execução, apesar da decisão de 2018 do Supremo Tribunal Federal, o Habeas Corpus Coletivo 143.641/SP – que confirmou a possibilidade de presas provisórias, gestantes e mães de filhos até 12 anos, aguardarem o julgamento em prisão domiciliar –, observamos ainda a permanência de um grande volume de mães e gestantes encarceradas. Portanto, nessa segunda etapa do projeto, em execução desde agosto de 2019, a atuação é específica às presas provisórias do Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, em Vespasiano, Minas Gerais, com o objetivo de dar efetividade à referida decisão do Supremo Tribunal Federal e de garantir o direito legalmente previsto. Refletimos sobre o óbvio que deveria ensejar no mínimo uma reflexão, mesmo após essa decisão do STF, há uma unidade prisional destinada às mulheres grávidas, sendo que 80 % são presas provisórias. Se na estrutura social as mulheres negras são a base da pirâmide, como afirma Angela Davis [5] , se elas se movimentam toda a pirâmide se movimenta. Logo, quando se trata das mulheres, as mulheres presas são a base de toda a pirâmide, sendo elas alcançadas por todas as violências que também atravessam as demais mulheres , com o acréscimo de vivenciarem o sistema de justiça criminal. Um sistema que se estrutura em uma concepção racista, machista e seletiva, como Salo de Carvalho ensina
Por Fernanda Oliveira 02 nov., 2023
Resumo : O Plenário físico do STF deverá decidir sobre nulidade de provas obtidas através de revistas vexatórias após o pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes no julgamento do ARE (Recurso Extraordinário com Agravo) nº 959.620 com Repercussão Geral (Tema 998). Quais as teses do julgamento? Quais os corpos são destinatários desta revista? Apesar da expressão aparentemente ser autoexplicativa: "revista vexatória", iniciaremos explicitando no que consiste essa prática. A pessoa que visita o sistema prisional, em sua maioria mulheres, sobretudo negra, para ingressar na unidade precisa entrar em uma sala, na presença de uma policial penal ou militar e tirar toda a sua roupa, ou seja, ficar completamente nua. Agachar até o chão três vezes de frente e três vezes de costa. Depois desses agachamentos, a pessoa precisa deitar em uma maca, como as de hospitais, levantar as pernas como se faz em uma consulta ginecológica e fazer força como se fosse expulsar um bebê de seu ventre ou defecar. Essa parte da revista ocorre durante o tempo que a policial entender necessário, mesmo havendo regulamentações risíveis dessa revista, na prática não há estrutura para que haja fiscalização. Esta revista possui variações ainda mais invasivas, como a introdução de dedos na vagina ou ânus das mulheres, a exigência que se faça força a ponto de defecar na maca, e por fim, é comum a célebre frase após tudo isso: "não estou vendo o seu canal, você não vai poder visitar hoje.". Pode surgir aos leitores a pergunta se o narrado acima de fato é real, nesse sentido, uma das coautoras desse artigo foi Presidente do Conselho da Comunidade na Execução Penal da Comarca de Belo Horizonte, Capital de Minas Gerais e em inspeções realizadas em dia de visitas, para corroborar as incontáveis narrativas das familiares, presenciou a realização da revista vexatória. Além de um dos coautores ser sobrevivente do sistema prisional, e por sua vez suas familiares já passaram por esta violação dos seus corpos centenas de vezes. Para além das experiências vivências pelas autoras e autor deste artigo que atuam na pauta prisional, tem-se os relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - órgão responsável por fiscalizar todo e qualquer ambiente de privação de liberdade, tais como presídios, centros de internação, casas de acolhimento de idosos e hospitais. Os relatórios do Mecanismo Nacional são elaborados por peritos que têm um fundamental papel técnico e institucional de registrarem o pesadelo que são os presídios brasileiros, no que diz respeito à revista vexatória, um trecho do Relatório de Inspeções Regulares nos Sistemas Prisional e Socioeducativo do Estado da Bahia1, sobre inspeções realizadas em 2022 registra que: "Inclusive crianças de 3 anos de idade têm de fazer os agachamentos próprios da revista vexatória e crianças menores têm de tirar a fralda para verificação. Também é requerido das visitas botar o dedo na boca e fazer força. Pessoas nuas são apalpadas por policiais penais quando da revista vexatória. Foi relatado que as mulheres são obrigadas a ficarem nuas na frente de agentes homens." Ultrapassando a explicação do que consiste na prática essa revista vexatória, recuperamos a origem do caso e em seguida a divergência instaurada no Tribunal. O STF está debatendo a revista vexatória na ação denominada como ARE (Recurso Extraordinário com Agravo) nº 959.6202 com Repercussão Geral (Tema 998) tratando da matéria processual sobre a controvérsia relativa à licitude ou ilicitude da prova obtida a partir de revista íntima de visitante em estabelecimento prisional, por ofensa. O caso concreto que deu origem à discussão da revista vexatória no âmbito de sua constitucionalidade ou não é o de uma mulher que, ao visitar o seu irmão no Presídio Central de Porto Alegre, passou por uma revista vexatória conduzida por policiais militares a partir de uma denúncia anônima, e durante a revista, segunda consta no auto de flagrante, foi encontrado 96,09g de maconha no canal vaginal da ré. A mulher em questão é Salete, ela nunca havia sido presa, e, segundo narra nos autos, levava a droga para livrar o seu irmão da morte ao quitar uma dívida que ele, usuário de drogas, havia contraído na cadeia. Este caso é paradigmático não só por se ancorar em prova obtida por meio de revista vexatória, mas também por escancarar qual corpo é tido pelo Estado como violável. A mulher ré neste caso, reside em uma região periférica, que concentra altas taxas de homicídio e baixas taxas de escolaridade infantil. Apesar de a mulher ter 35 anos, nunca chegou ao Ensino Médio. Ela tem dois filhos para criar, trabalha de segunda a sexta de 8h às 17h como faxineira e recebe como remuneração 65% do valor de um salário mínimo. A mulher neste caso é a Salete, mas nas filas dos presídios por todo o Brasil pode ser a Lourdes, Maria das Graças, Tereza, Cristina e tantas outras que, para o Estado, podem ser desnudas à força e obrigadas a abrirem as pernas, agacharem, fazerem força e terem seus corpos invadidos pelo Estado por meio de seus agentes policiais. Importante frisar que a escassez de dados oficiais referente ao perfil de pessoas que visitam o sistema prisional é uma política de Estado, implantada como forma de invisibilização. Os dados mais atuais existentes em relação a esse perfil foram produzidos pela sociedade civil. O relatório " Revista vexatória: uma prática constante" 3 aponta que o perfil das pessoas que visitam o sistema prisional, e que são as vítimas das revistas vexatórias são mulheres, em maioria negra. Na mesma linha dos dados de cor/raça de quem visita, e não menos importantes, pois contribuem para a clivagem racial, estão os dados das pessoas que recebem visitas, as pessoas em privação de liberdade. De acordo com o Relatório do Sistema Nacional de Informações Penitenciárias de dezembro de 2022, 452.868 pessoas presas estão declaradas como negras, o que corresponde a 54,51% da população presa, isso significa dizer que são filhas e filhos de pai e ou mãe negras. Passando ao julgamento no STF, o mesmo foi reiniciado no plenário virtual em 12 de maio de 2023 - observamos que uma matéria desta envergadura julgada sem a ampla participação e debate de todos os atores jurisdicionais é o espelhamento da tensão constitutiva permanente dos Direitos Fundamentais -, sendo que estão estabelecidas duas teses: A primeira, expressada no voto do Relator do caso, Min. Edson Fachin - acompanhada pelas Ministras Rosa Weber e Carmen Lúcia, Ministro Roberto Barroso e Gilmar Mendes-, sustenta ser "inadmissível a prática vexatória, da revista íntima em visitas sociais nos estabelecimentos de segregação compulsória, vedado sob qualquer forma ou modo o desnudamento de visitantes e a abominável inspeção de suas cavidades corporais, e a prova obtida a partir dela obtida é ilícita, não cabendo como escusa a ausência de equipamentos eletrônicos ou radioscopias.". A segunda tese, manifestada no voto do Min. Alexandre de Moraes - acompanhado pelos Ministros Dias Toffoli, Nunes Marques e André Mendonça - sustenta que "a revista íntima para ingresso em estabelecimentos prisionais será excepcional, devidamente motivada para cada caso específico e dependerá da concordância do visitante, somente podendo ser realizada de acordo com os protocolos preestabelecidos e por pessoas do mesmo gênero, obrigatoriamente médicos na hipótese de exame invasivos. O excesso de responsabilidade do agente público ou médico e ilicitude de eventual prova obtida. Caso não haja concordância do visitante, a autoridade administrativa poderá impedir a realização de visitas". O centro da divergência é o termo excepcional, pois ela expressa uma incompreensão acerca do estado de coisas inconstitucional que configura o sistema prisional brasileiro, como sustentou o próprio STF no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347. A divergência expressa o abismo existente entre a realidade nua e crua e a visão de mundo dos nossos tribunais. Expressa o racismo e a misoginia estrutural e estruturante do nosso Poder Judiciário, em sua face mais perversa, a negativa de sua existência, e também o impacto das decisões em sua manutenção ou contestação. Por fim, traduz também que a ideia de "segurança" que consiste em defesa da "sociedade", só uma parte dela, suplanta qualquer direito e garantia fundamental quando se refere a "não sociedade", por exemplo quem habita e frequenta o sistema prisional. Existem tecnologias que permitem identificar, sem a realização de revista vexatória, a presença de objetos e materiais que estejam sendo carregados fora ou dentro do corpo de alguém, através de equipamentos de Body Scanner. Essas tecnologias estão presentes hoje em parte do sistema prisional brasileiro, que recebe recursos do Fundo Penitenciário Nacional para a compra desses equipamentos, bem como outros equipamentos de revista como os detectores de metais e os bancos eletromagnéticos que detectam celulares também. Mas ainda não cobre todas as unidades prisionais do país, necessitando de mais investimento de recursos. A revista vexatória tem o propósito de punir, com uma falsa justificativa de combater as drogas. Mesmo o impacto da revista vexatória em termos da suposta guerra às drogas é baixíssimo. Dados da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo à Defensoria Pública, publicados na pesquisa da Rede Justiça Criminal indicam que em 2012, um ano depois do fato que gerou o caso paradigmático do qual se originou o ARE em questão, das quase 3,5 milhões de pessoas que foram submetidas a revistas vexatórias em São Paulo, apenas 0,02% foram flagradas com alguma quantidade de droga ou componente eletrônico. Neste contexto, não se trata de um conflito entre os princípios da dignidade e da intimidade, e os princípios da segurança e ordem pública, não é razoável admitir que o Estado viole os corpos de milhões de mulheres em nome de uma suposta Segurança Pública que sequer se demonstra na prática. A questão atualmente colocada ao Supremo Tribunal Federal mobiliza movimentos sociais de familiares, amigos e sobreviventes do cárcere há mais de 15 anos5, durante esse tempo houveram avanços, com a proibição da revista vexatória em diversos estados, inclusive a resolução nº 286 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) de 06/10/2022 veda a revista vexatória, e mesmo em casos de fundada suspeita, é vedado o desnudamento, conduta que implique o toque ou a introdução de objetos nas cavidades corporais da pessoa revistada, uso de cães ou animais farejadores, ainda que treinados para esse fim agachamento ou salto. Estes avanços são conquistas dos movimentos sociais, fruto de muitas manifestações nas ruas e portas de presídios, e mesmo tais avanços estão ameaçados pela tese sustentada pelo Ministro Alexandre de Moraes. O descompasso entre a interpretação dos Ministros do STF que sustentam a segunda tese com a realidade social prisional é impactante. Hoje, o centro do debate da sociedade civil organizada é a utilização adequada dos equipamentos eletrônicos de revista e também que todas as unidades prisionais tenham esses equipamentos, e não o estabelecimento das excepcionalidades que permitam a revista vexatória que desconsidera a vulnerabilidade do público que será alcançado, e principalmente se escora em uma visão "ingênua" do agente de segurança pública, de que sua atuação não é orientada pela estrutura social racista e misógina. No decorrer da retomada do julgamento no plenário virtual do STF, em 19 de maio, havia estabelecido uma maioria de votos no sentido de prevalecer a primeira tese sustentada pelo Ministro Relator Edson Fachin. No entanto o voto do Ministro André Mendonça foi lançado incorretamente. Com isso, o Ministro Gilmar Mendes fez um pedido de destaque, implicando no recomeço do julgamento no plenário físico do STF e o debate recomeça do zero, segundo previsão dos procedimentos internos do Tribunal. Uma possibilidade processual - fundamental - em recomeçar o debate amplo de uma matéria que atinge milhões de corpos de mulheres negras e periféricas nas visitas semanais aos presídios no país. Portanto, estamos diante de um julgamento no STF que pode estabelecer a vedação da revista vexatória em visitantes do sistema prisional em tese de repercussão geral, promovendo a garantia da dignidade humana de milhões de mulheres brasileiras, seguindo a tese sustentada pelo Relator Edson Fachin; ou, caso prevaleça o entendimento da excepcionalidade arguida pelo Ministro Alexandre de Moraes, sem dúvidas será um retrocesso nos avanços da promoção da dignidade à essas mulheres, que tem sido empreendido pela administração pública e pelas lutas dos movimentos sociais antiprisionais. Oxalá que a Presidência do Supremo coloque em pauta a retomada deste julgamento o mais breve e que o debate constitucional também se alicerce no horizonte de quem será alcançada por esta decisão. O STF, mais uma vez, tem a oportunidade de posicionar diante de uma das tantas facetas do racismo e da misoginia. Defendemos que seja um posicionamento constitucional em defesa dos corpos das mulheres, sobretudo negras e periféricas, em defesa do direito a não violação de corpos e da saúde mental.
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